Meu Diário
03/04/2011 19h39
Porque calamos?

Neste domingo quando estava na fila do supermercado
próximo de casa, deparei-me com um rosto familiar e
extremamente lindo. Sem exageros, um rosto limpo,
sem maquilagem, cabelos presos tipo rabo de cavalo que
deixava toda a expressão facial às claras, o que permitia
uma contemplação generosa de toda a beleza daquele
momento. É provável que isso tenha me deixado extasiado
a ponto de não abrir a boca para perguntar seu nome e se
era quem eu imaginava ser. Até porque, para abrir a boca
eu teria que fechá-la primeiro. Acho deselegante e uma
invasão de privacidade fixar os olhos em alguém sem que
a outra parte o tenha consentido por uma reciprocidade
qualquer. Vi uma menina tão linda, forte e viva que fui
jogado ao passado; há pelo menos uns 45 anos atrás.
Nessa época morava com minha família em Ponta Porã -
MS, na divisa com o Paraguai. Conheci uma menina com
os mesmos olhos e a mesma beleza. Mas havia uma grande
diferença entre elas. A menina de minha infância era frágil,
delicada e muito mimada pelo pai. Era criada com exagerado
zelo, que mais parecia uma boneca de porcelana. À mesa,
os irmãos e os primos não podiam olhá-la, pois logo vinha
bronca irremediavelmente seguida de um tabefe.
Todos na mesa eram obrigados a comer de tudo sem
reclamar ou fazer caretas. Ela comia o que queria e a
hora que queria. Ai de quem fizesse um comentário.
Minha família mudou-se para outra cidade e nos
distanciamos por um longo tempo. Guardava comigo
daqueles dias confusos e cada vez mais distantes da
realidade a impressão de que aquela menina linda e
delicada teria dias normalmente mais duros do que
a vida costuma oferecer. No meu imaginário, ela teria
muitas dificuldades e sofreria por ser privada de
aprender desde muito cedo que a vida se constitui de
perdas diárias. Ela cresceu, casou-se, teve filhos e em
especial uma filha que, buscando pela minha longeva
massa cinzenta, era tão linda quanto à mãe e delicada
em igual proporção. De fato herdou toda a beleza da
mãe sem o menor pudor. As comparações para seus
períodos de infância param por ai. Sua filha desde muito
cedo se mostrou forte, decidida e obstinada. Buscou
atividades totalmente radicais para uma menina de doces
trejeitos à época. Fez montaria em bois e cavalos com tal
destreza que acabou virando cowgirl campeã de rodeio.
Mais tarde, formou-se em educação física e especializou-
se em árbitro de futebol. Decididamente não tinha nada a
ver com a mãe no quesito comportamento. A mãe por sua
vez sofreu as agruras que a vida impõe a todos nós.
O casamento complicou e com o tempo já não era mais
conveniente mantê-lo. Passou a ser seu próprio arrimo.
Mas, ao contrário do que minha parca imaginação construiu
daquela imagem da infância, a mãe superou-se em muito
ao que eu por minha conta imaginei de difícil labuta.
Superou-se em tudo e a todos.
Não só sobreviveu como soube viver. Tudo isso me ocorreu
naqueles poucos minutos e a uma distância menor ainda
entre a menina bonita e eu naquela fila do caixa.
Lembro-me que havia uma colega com ela e trazia no
dedo uma aliança de prata com duas letras em destaque,
não sei se iniciais ou sigla do estado de origem: MT.
Percebi ainda que trajavam uniformes. Short e camiseta
na cor preta. Ainda sem querer encarar, imaginei a princípio
ser uniforme de atividades físicas militar. Depois decidi que
seriam esportivos como os de árbitros de futebol.
Olhando para aqueles olhos pretos e ávidos, guardando
sempre o cuidado de não ser percebido, notei por um breve
momento que ela teria juntamente com a mãe uma situação
difícil e dolorosa para superarem. A mãe antes frágil, serviria
agora de ponte segura para a travessia desse rio caudaloso
e turbulento que são as perdas que a vida nos reserva,
como havia mencionado na construção do perfil infantil.
A propósito, ambas nunca perderam a meiguice, doçura e
o tempo mostrou-se extremamente cúmplice com a beleza
das duas. Eu sim perdi a oportunidade de perguntar o nome
daquela menina. Talvez fosse a filha da minha prima Zaíra,
a Claudinha. Mas, por excesso de zelo e educação, calei.
O medo me derrotou neste domingo.
Por medo de pagar mico nunca vou saber ao certo.
Porque nos calamos quando sabemos que devemos nos
arrepender das coisas que não fazemos e não o contrário?

Publicado por LuizcomZ em 03/04/2011 às 19h39