Um sorriso agregador de amor e solidariedade
Dentre tantas pessoas que conheci nesses mais de
meio século, tem uma pessoa que me é muito cara
e estimada.
Onde estiver será lembrada com carinho, alegria e principalmente com irreverência.
Na contra mão das normas fez alguns inimigos não declarados, poucos, e quase nenhum declarado. Temperamento forte e decidida. Nunca deixou desaforo lhe tirar o sono.
A primeira imagem dessa figura inusitada quando a
vi, não sei explicar ao certo, porém, era como se a tivesse visto desde sempre. Mas, o que mais me chamou atenção era a expressão do rosto, alguma coisa ali me lembrava alguém. Uma sensação de curiosidade dominou-me. Quis saber o que havia naquele sorriso que inspirava, calma, segurança e amizade. Tempos depois com a devida proporção, à
ambas, fiz uma constatação óbvia, para mim pelo menos, o sorriso me lembrava alguém.
A imagem é perfeita em minha cabeça.
Pelo meio do matagal, um barulho acompanhado de um vulto chamou minha atenção.
A vegetação baixa, à altura da cintura, porém, com
várias árvores nativas e em abundância naquela
região, onde comprei minha primeira e única casa
até hoje, me fez percebê-la. Estava em frente ao
meu portão desprezando alguns objetos, os quais na
casa nova não seriam úteis, embora, ainda em
condições de uso.
Olhei de soslaio na direção oposta à rua e vi uma senhora próxima dos cinquenta e poucos anos, à primeira vista, boliviana. Pelo cabelo e principalmente o casaco listrado na horizontal, mais ou menos dez centímetros cada listra em cores variadas.
Vinha com os braços cruzados e segurando as
laterais do casaco com as mãos, se protegendo do
vento, que àquela hora era um tanto frio.
Reparei que pela velocidade, direção e expressão,
ela vinha ter comigo. Ainda de lado e separando
objetos na calçada para facilitar o trabalho do
caminhão da coleta, ela me alcançou. Primeiro com
o sorriso que mesmo antes de atravessar a rua me cativou. Aquele sorriso ficou marcado. Como disse,
me lembrava alguém. Mas quem? – Você vai jogar isso tudo fora? Posso pegar estes? Apontando para alguns objetos. Apontando para alguns objetos. Mais
tarde vim entender o motivo do pedido. Havia nela uma preocupação com as coisas que se podia fazer de bom ou reaproveita-las em utilidade para alguém. Em sua maneira de pensar, tudo poderia ser aproveitado, de fato. É a famosa Lei de Lavoisier. Senti logo que aquele não seria um encontro fortuito. Estava certo que nos encontraríamos novamente.
E, de fato. Menos de vinte e quatro horas após, estávamos conversando como se conhecêssemos há
anos. Suas incursões pelo condomínio eram frequentes e providenciais. Sempre procurando solucionar, resolver, ajeitar, contemporizar. Aos poucos fiquei conhecendo os filhos e toda a família. Quatro homens e uma menina. Kelly, de 13 anos mais ou menos, a caçula. O marido, Agenor, um tipo tranquilo e na mais apropriada tradução, um se vira
nos trinta. Sempre negociando alguma coisa,
ambulante das antigas. Se aquele fusca falasse,
teria muitas história para revelar. Os meninos, todos
solteiros, moravam com ela por opção. Poderiam ter
suas vidas independentes, mas o coração daquela
mãe de tão grande e generoso, era difícil se desligar.
Ainda em relação ao Agenor, era tão zen que faria
qualquer zen budista morrer de inveja.
Como imaginei, nossa amizade fluía rápido.
Sempre que possível, para não dizer todos os dias,
era comum eu passar na casa dela, ou o contrário.
Com os filhos não foi diferente. Deles, o mais velho
foi o último que conheci. Mané. O Eric chegava em
casa todo esbaforido e com o fôlego escasso, rosto
vermelho, eu perguntava de onde vinha, “- Da casa
da dona ‘porcima’, o Mané vez ovinho de codorna
pra nós”. Nos primeiros meses ele trocava o ‘n’ pelo
‘m’, coisas do Branco. Mané sempre que dava
passava em casa e dizia que era para mandar os
meninos irem comer ovinhos de codornas.
Isso era uma festa. Ainda mais que os meninos
foram criados soltos e a vontade, viviam correndo
de um lado para o outro pelas ruas e a praça de
alimentação, onde fica o playground, campos de
vôlei de areia e futebol, e uma cantina, do Gaúcho
da Praça. Edson, mais focado na questão família,
desde sempre se mostrou propenso à casar e ter
sua casa com a Cláudia, ainda hoje juntos, felizes e
com duas filhas lindas.
Naturalmente fui apresentado aos outros dois,
Arthur acabou sendo escolhido para ser o padrinho
do Eric, meu filho caçula. Torcedor do Corinthians,
mesmo com todo o carinho e apreço que nutria
pelos meninos, não conseguiu convencê-los a mudar
de time. Todos em casa são Palmeiras, menos a
Rose, é apartidária em relação à futebol.
A dor de cabeça dos quatro e da minha amiga,
principalmente, chama-se Kelly. A irmã caçula.
Enormes olhos verdes e muita vontade de interagir
com as amigas de mesma idade no condomínio,
eram frequentes os gritos do portão da casa e nas
esquinas toda vez que ela fugia.
Havia também o filho caseiro e parceiro, Cesar.
Certa vez, Cesar chega em casa todo assustado,
branco tal qual uma vela, “- Rose, o
mendinho caiu da beliche; tá lá no chão e nem se
mexe”. Correndo, a Rose foi ver o acontecido.
Ah! Ele está dormindo. Desde sempre o Mendel tem
esse costume de deitar no chão, era comum
encontra-lo deitado ao lado da cama no piso do
quarto. Cesar era o que mais dava mostras de
preocupação com as atitudes da mãe e sobretudo
com sua saúde. Sistemático, preocupado em
demasia, sempre contemporizando tudo e a todos.
Uma de suas mais importantes qualidades fora
assimilada pelos filhos. Todos a seguiram nos
exemplos de vida simples, ética, prestativa e
acolhedora. Todos em perfeita retidão.
Não fosse por eles a Rose teria problemas para
concluir o curso de enfermagem.
Faltas eram e continuam sendo motivo para
reprovação e não conclusão de curso no Senac.
Em vários momentos em que eu estava viajando, a
trabalho, Edson e Arthur se revezaram em levar e
trazê-la, uma vez que o horário do ônibus nem
sempre coincidia com o término das aulas.
Anjos de Guarda também. Certa vez uma
ex-funcionária diarista nossa, juntamente com o
marido e aproveitando-se da rotina e amizade com
nossa cachorra, Funny Girl, entraram na madrugada,
prenderam a Funny no banheiro da edícula nos
fundos, e já estavam separando algumas roupas
e objetos, quando percebi que a Funny estava
grunhindo, gemidos de agonia e euforia, algo
incomum para aquele horário.
Liguei para a casa da Porcina e os meninos vieram,
cada um com um pedaço de pau na mão.
Infelizmente, os gatunos perceberam que eu havia
levantado e saíram correndo pelo corredor antes da
tropa de elite chegar.
Dessa maneira nossas vidas foram se interligando
e criamos uma amizade bastante sólida e presente.
Nada fora pensado, programado, imaginado.
Afinal, o que pensar de algo que sai do nada,
do meio do mato, atravessa a rua e com um leve
sorriso, encanta e agrega. Promove a interação e
transforma às suas possibilidades uma grande parte
da pequena comunidade em que vive. Não pedia
nada para si, pedia para ter a chance de poder
multiplicar, ofertava muito mais que recebia.
Com apenas um rim, propensa ao diabetes, o que
veio a se confirmar com muita intensidade em seus
últimos dias, mantinha lépida suas ações em prol
dos demais e detrimento da própria saúde.
Inúmeras vezes se dispôs a cuidar dos meninos,
dando almoço, janta e atenção redobrada enquanto
Rose e eu estávamos impossibilitados por
compromissos outros. Essa família realmente
mereceram a mãe que tiveram; ela deixou um
enorme legado, de amizade, fidelidade,
companheirismo e muita ética nas atitudes.
Em tudo isso os filhos souberam multiplicar.
Lamento, como também e tão bem lembrou a Rose,
desperdiçamos tempo com pessoas que infelizmente
não nos agregam valores e conceitos, dedicando
pouco tempo aos que de fato merecem.
Porcina mereceu todo tempo a ela disponível por
nós e muito mais. É preciso reconhecer cada minuto
ao seu lado como sendo proveitoso e de exemplos
valiosos de amizade verdadeira. Sou grato, minha
família é imensamente grata por tudo o que minha
amiga Porcina e sua família proporcionaram à nós.
Há um ensinamento de Jesus, em casa de Zaqueu,
onde Ele ensina, mãe e irmãos, são os que me
seguem, não precisam nascer da mesma mãe,
morarem na mesma casa.
É a grande família universal. Que em determinado
momento juntam-se para cumprirem suas missões
de resgates e aperfeiçoamentos unidas pelos laços
espirituais. Reencontram-se no meio da jornada
evolutiva para matar a saudade uns dos outros,
depois separam-se naturalmente e vivem suas vidas
em distância apenas física. Aquele sorriso que vi?
Bem, como havia dito, guardando as devidas proporções, considerando minha visão, era o sorriso
que Leonardo da Vinci imortalizou em sua obra mais
famosa e notável, Mona Lisa. Assim como as
caravelas singram os oceanos, partindo em destinos vários, levam em seus convés, lembranças de terras
distantes, mas que sabemos para onde foram e que
a comunicação é possível, basta que o ensinamento
maior oferecido por Jesus, o amor, se alinhe às
condições para esse mister, o diálogo será
restabelecido e a saudade aliviada.
Tal qual cartas, telegramas, e-mails, posts e whats
do plano superior, nossos amados parentes e amigos
estando em sintonia e condições, com a devida
autorização celestial do Pai Criador, inscreverão em
suas páginas as notificações do Facebook Divino,
na sua verdadeira linha do tempo.
Fique bem, Porcina. Fique com Deus!
em tempo:
A foto com o sorriso que me lembra Mona Lisa, ainda não está disponível
no blog.