Meu amigo judeu.
Todos tem um amigo!
Amizades nem sempre escolhemos. Embora pareça que seja assim, na verdade somos escolhidos. Eu escolho ser amigo de uma determinada pessoa, mas essa pessoa é quem dá o veredito final. O curioso é que o mesmo acontece com ela, ainda que ela não perceba. O processo de escolha é recíproco. De resto, tudo é uma conspiração universal. Em 1974, cursando o colegial numa escola estadual tradicional de Campo Grande, Mato Grosso, hoje, Mato Grosso do Sul, conheci dois irmãos completamente diferentes em temperamento e, sobretudo, fisicamente. Um, louro de cabelos lisos, compridos, como os de Rick Wakeman¹, Pedro Meyer Glaychman, o outro, castanho escuro, cachopa, no estilo black power, Mendel Moises Glaychman. A amizade surgiu rápida e forte, ambos se tornaram meus parceiros. Praticamente dividia o dia entre o colégio e a casa deles. Dona Nelza, a mãe deles, passou a ser uma segunda mãe. Minha medida de compreensão a respeito de família 'diferente', passou a se formar com a chegada dos outros irmãos que ainda estavam em São Paulo e chegaram com a irmã mais velha, Angelina, ruiva, extremamente linda, diga-se de passagem. Mas, metida que só, nariz empinado, melhorou depois, mas no começo era complicado a convivência. Conheci os irmãos caçulas, Tamio e Siger. Pelos nomes dá para ver que são diferentes. Ambos mestiços, nissei, talvez sansei, não sei, nunca perguntei a respeito. Mais tarde vim a conhecer a irmã caçula, Daniele. Morena, alta, esguia, rosto afilado, cabelos negros e escorridos, olhos negros e em formato de jaboticaba, davam a entender claramente sua etnia, uma índia sem cocar, contrariando Nando Reis. Não estranhei a procedência dos irmãos orientais porque junto havia um padrasto dos ocidentais, o Fumió, um japonês pra lá de gente boa. Tranquilo, fala mansa, pouca conversa, muito sorriso, trabalhador. Para mim os meninos Tamio e Siger eram dele com a mãe Nelza. Não eram. Ele era padrasto também dos bodinhos. Vejam que coisa interessante, Nelza visivelmente de origem afrodescendente, padrasto japonês, um afilhado louro, outro moreno de cabelos encaracolado, uma irmã ruiva, outra irmã índia, dois irmãos mestiços japoneses que não eram filhos do padrasto japonês e meus dois novos amigos, filhos de judeu. Não se podia chamar essa família de normal para os padrões mesmo dos dias atuais, que dirá daquela época. Como disse, nossa amizade se fez muito rápida e firme, esses detalhes não tiveram a menor importância, aliás, contribuíram para que eu desde muito cedo, compreendesse que é nas diferenças que encontramos as igualdades. Como um puzzle, só se encaixam por serem diferentes. Em 1978, Mendel e eu já éramos reconhecidos por nossas habilidades em montar e promover festas. Aniversários, casamentos, desfiles, domingueiras e tudo o que se referia a uma discoteca, as baladas de hoje. Numa dessas discotecas, promovendo a festa de aniversário de quinze anos de uma garota do colégio Osvaldo Cruz, a Deise, foi onde conheci a Rose, minha esposa e companheira há 43 anos. Portanto, nossa amizade remonta de 48 anos. Não é pouca coisa. Ele e mais outro amigo com quem ainda mantenho contato, Edson Gama Simões, foram quem me levaram à 14ª Cia de Comunicações, onde cumpri meu tempo de serviço militar, QM 11. Também foi da casa dele que sai numa manhã de setembro, dia 19, aos gritos da Dona Nelza, me xingando de vagabundo, moleque e outros adjetivos que convém não mencionar, por que era o dia do meu casamento e eu ainda estava dormindo por volta das 10 horas da manhã. Isso para ela era o fim da picada. Mulher madrugadora e de temperamento forte, explosivo e detonante. Batia primeiro, depois falava o motivo, isso quando falava. Só dizia que, você sabe porque está apanhando, não me pergunte porque estou batendo. Mais ou menos assim funcionavam suas regras. Certa vez, numa dessas atitudes impensadas de adolescentes candidatos a quase jovens, fomos, como outras tantas vezes, até Rio Verde, não o de Goiás, o de Mato Grosso do Sul, Sete Quedas de Rio Verde, hoje já não há nem sinal de uma queda sequer. Assoreado completamente, o Rio Verde na cidade de Rio Verde de MS, já não existe mais como nos idos de 1976/1978, período em que frequentávamos. Numa dessas idas, duros para variar, grana só para a gasolina, resolvemos que poderíamos aproveitar o período da noite ou logo de manhazinha, para fazer uma ‘feira’ (rapinagem mudou de nome), no barzinho que havia no local. Tudo bem trancado, porém, havia uma pequena janela basculante, sem grade, e melhor ainda, sem janela. Algo assim como 0,40x0,60, uma fresta, pode-se dizer. Mas, para garotos malucos e magricelos, era tudo o que precisávamos. Entrei. O problema é que só tinha cerveja e pinga, e quente, para piorar. Bom, não tinha outro jeito, o salame e o pão que achávamos que encontraríamos só chegou com o dono mais tarde. Escondemos algumas garrafas de cervejas atrás da queda d’água de maior volume, local mais gelado do rio. A temperatura costumava chegar à 32/35°c, então, passamos a beber cerveja e comer as bolachas maria e cream cracker e os biscoitos de polvilho, tipo vento levou. No domingo, pela metade da tarde, com fome e mais ou menos bêbedos, voltamos para casa.
Em outra oportunidade, por volta de meia noite mais ou menos, fomos parar num bairro bem conhecido e ‘respeitado’ de Campo Grande, Jardim Paulista. Evidentemente, como toda cidade tem, o Jardim Paulista em Campo Grande era também conhecido como o local das ‘damas da noite (hoje nem sombra do passado)’, onde havia mais puteiro por metro quadrado da cidade. Pronto, falei! Entramos no primeiro que apareceu, pra variar, mais duros que nunca. Estou falando de dinheiro, ora pois! Local escuro, mesas espalhadas, ninguém sentado, música de corno, uma mulher atrás do balcão virada de lado olhando na direção oposta à nossa, quando percebeu nossa presença; jovens, camionete Chevrolet C-14, do Fumió, veio em nossa direção igual mariposa atrás de luz. – Ôla, que tal? Pelo sotaque conclui logo, pareja¹ de mi pátria. Sim, nasci em Ponta Porã, fronteira seca com Pedro Juan Caballero, portanto, ¹companheira de minha pátria. A moça(!), portadora de dois dentes, um de cada lado, tipo uma cancela, uma trave de handebol, banguela mesmo; chegou perto sentou na mesa em que encostamos e foi logo dizendo, - ¿Qué tal una...
Nós,... ??? Ela, - Num sapoitê. Traduzindo, sapoitê (pronuncia-se com acento no último e), é uma palavra tupi-guarani. Significa, rapidinho, numa tradução livre. Ou seja, num vapt-vupt e pronto. Não lembro quem saiu primeiro do antro. Entramos na camionete e num sapoitê, estávamos bem longe dali. Nunca mais voltamos para aquelas bandas. Que experiência!
Dessas lembranças, a que mais causou foi a de um 7 de Setembro. Saímos, Mendel e eu, passamos na casa do Alvinho, mais adiante pegamos o Rubens. Os quatro na cabine da C-14 do Fumió. Como de costume tomamos o rumo dos altos da Calógeras em direção aos drive in, por lá haviam várias lanchonetes que amanheciam e faziam uns hamburgues tipo, morte lenta. Na altura do bidezãoI, uma fonte construída pela prefeitura que deveria ser luminosa e que jorrasse água na vertical, o que nunca aconteceu, havia ali, onde depois e não sei se ainda hoje tem, o prédio da Tv Campo Grande, sucursal do SBT, uma oficina embaixo de vários pés de mangas, a camionete deu pane elétrica chegando na tal fonte. Depois de tentar de um tudo, empurrando para ver se pagava no tranco, resolvemos que o melhor seria encostar na oficina do mangueiral. O dono acordou de seu descanso, isso já passava de uma da manhã, e com cara de pouca disposição, começou a analisar a situação, não do veículo, mas dos ocupantes, que para ele mais pareciam meliantes. Não demorou muito chegou a Branca de Neve, como era conhecida a camionete Veraneio da Policia Civil. Dirigindo, junto ao delegado, um agente. Álvaro, Rubens e eu, cansados, dormíamos na cabine, o Mendel de um lado para o outro do lado de fora, tentando arrumar e acompanhando o tal mecânico. O delgado chegou pela porta do passageiro e o agente do outro lado, - Quem é o dono da camionete? Nós três apontando para o Mendel, que não viu o gesto, - ele, dissemos. Nisso o Mendel chega junto ao delegado suando e ofegante, já muito mais preocupado com a dona Nelza que com qualquer autoridade que pudesse se interpor no assunto. Você é o motorista? Sua habilitação e documentos do veículo. Era tudo o que ele não tinha. Aliás, o único que tinha um documentos com foto e vencida, a carteirinha de estudante da UCE (União Campograndense de Estudantes), era o Álvaro, e atestava que tinha 17 anos. Ele insistia em dizer que era de maior. Por sinal, menor em altura que nós três. O delegado olhou para nossa cara e disso, - Seguinte, você vai lá na carroceria, os três aqui na cabine comigo, vamos para a delegacia. Pronto, fodeu! Dona Nelza vai matar a gente. Feito a ocorrência fomos trancados num banheiro que havia na recepção da delegacia, a porta era uma cancela de grade, o que dava a impressão de uma cela. O ambiente media 1,80 de largura por 6 de comprimento, escuro e a metade estava cheia de bicicletas, provavelmente todas apreendidas de furtos e roubos. No chão, deitado junto à parede e com a cabeça virada para a grade e dormindo ou se fazendo que estava dormindo, um sujeito magro e comprido. Não querendo arrumar mais encrenca, ficamos quietos e encolhidos mais para o fundo, próximo às bicicletas. O dia não tardou a amanhecer. Mendel continuava impaciente, foi até à grade e chamou o delegado, na verdade, implorou para que ele não chamasse a mãe dele, mas, o Fumió, padrasto e dono da camionete. - Minha mãe não é normal, ela não vai entender, deixa ela quieta, chame o meu padrasto que é o dono da camionete, por favor! Menos de 10 minutos chega a Dona Nelza. Entrou no estilo Nelza de sempre, - Cadê aqueles vagabundos? Não tem o que fazer? Onde já se viu, pegar carro escondido, sem pedir e sem documentos, de menor? Peludo (meu apelido nos campos de futebol), você também é um safado, irresponsável, sua mãe sabe que você tá aqui? Álvaro, seu pai já está vindo. E você quem é? perguntando para o Rubens, mas não esperou a resposta e foi direto falar com o delegado. O delegado entendeu desde o instante que nos viu na oficina, que éramos todos molecadas e que estávamos apenas aproveitando para curtir uma noite, sem contar que isso pudesse acontecer. E aconteceu. O pior ainda estava por vir. Manhã de 7 de Setembro, eu teria que estar na escola, Joaquim Murtinho, era da fanfarra e tocaria o tarol. Para sair da delegacia, na rua 14 de Julho com a 7 de setembro, um cordão de gente todos tomando conta da calçada bem em frente à porta do presídio, e nós todos amarrotados, despenteados e sob os gritos nada discretos de Dona Nelza, tivemos que atravessar a 14 diante daquela multidão. Claro que chamamos mais atenção que o tal desfile da Pátria. A propósito, o tal sujeito que estava deitado no chão da delegacia, era um amigo nosso, na época, ele namorava uma das irmãs da namorada do Pedro, irmão do Mendel. Não me recordo o nome dele. Mas, a ocorrência dele ficou registrada como o maluco que estava dando cavalo de pau com um Chevrolet Opala, tentando arrebentar as cordas preparadas para o desfile na 14 de Julho. Só gente fina! Um 7 de Setembro para nunca mais esquecer.
E o Seu Maurício? Que presepada aquela. Em ponto de sermos pegos e acusados de furto. Numa das nossas domingueiras no Osvaldo Cruz, as famosas discotecas de final de tarde, achamos que o amplificador do colégio, ficava na sala da diretoria, seria uma força a mais na aparelhagem de som. O plano era simples, entrar pela cantina, subir até o mezanino de acesso à secretaria e pronto, dentro a gente daria um jeito. Mais fácil que tirar meleca do nariz. Retiramos o amplificador e, claro, ficou mocosado no fundo do palco embaixo de outros aparelhos nossos para não chamar atenção, muita gente conhecia o tal eletroeletrônico. Foram artes que pensando bem, como o Mendel comentou dia desses ao celular, a gente tinha uma índole bem ruinzinha, heim! Ainda bem que ficou para trás e não trouxe complicações. Coisas da impetuosidade juvenil. Ouve uma vez em que frequentávamos uma vila de casa, a Sargento Amaral, sempre que arrumava uma namorada, ele dava um jeito de arrumar alguém que morasse perto ou que fosse amiga da minha namorada, só para quando saíssemos, aproveitar para sairmos todos juntos. No caso da Sargento Amaral, minha namorada na época, Evânia, tinha uma irmã, Silvana, e ele logo se deu um jeito de ficarem amigos e iniciou um namoro que não durou muito, mas tivemos boas histórias e a família delas era muito legal, pessoal sulista e de muita simpatia e sabiam receber visitas. Numa noite ao voltarmos para casa, havia um atalho que cortava por dentro da vila, um espaço destinado à maquinários sem uso do DNER, algo como um cemitério de máquinas e tratores. Havia um trilho no meio da vegetação, um capinzal de braquiária, e lá fomos nós, a noite não estava muito clara, mas o atalho era significativo, encurtava em muito o trajeto de volta. Fomos caminhando e conversando, de repente, percebi que estava falando sozinho, olhei para trás e não vi o Mendel, escutei um chamado abafado e distante, vindo do chão, o Mendel havia se desviado da trilha e caiu num buraco sumindo por inteiro. Por mais amizade que eu tenha por alguém, esse tipo de coisa não há controle para o riso, fiquei uns minutos rindo de chorar, e ele muito puto e preocupado, poderia haver algum inseto peçonhento ou mesmo uma cobra, - Porra, Peludo, me ajuda aqui e para rir! Ajudar eu ajudei, mas parar de rir, só no outro dia.
Na fase de discotecário, o DJ de hoje, aconteceram casos que perduram até hoje. O mais importante, e não por outro motivo, meu casamento. Essa é uma história que gosto de contar, quando me lembro do momento em que vi a Rose pela primeira vez foi algo diferente, único, não tinha como não ser diferente. Os olhos negros, enormes, cabelos pretos e compridos até a altura da cintura num fio reto e sem recortes, uma índia linda. Fiquei encantado e na minha cabeça não tinha outro pensamento, - Tenho que falar com essa menina. Ela estava distante, mas numa troca de efeito sonoro entre uma música e outra, desviei o olhar um instante foi quando ouvi a voz dela bem em frente à pick-up de som, -Você que é o carinha do som? Vou dizer uma coisa, foi uma sensação única, diferente de tudo que já tinha sentido. É, pick-up era como se conhecia o aparelho que se colocava os LPs, Long Plays, e era uma pick-up Garrard, coisa chique, a melhor na época. A partir daquela pergunta se passaram já mais de quarenta belos anos. Depois de casados, meu amigo Judeu e eu, ficamos sem nos ver um bom tempo, passei a viajar pela empresa e me mudei de cidade e estado durante uns 20 a 25 anos mais ou menos. Neste ano de 2016, em outubro, ele me ligou dizendo que viria à Curitiba para uns exames de rotina, e que aproveitaria para passar em casa uns dias, de Curitiba até em casa são 120 quilômetros, de fato, veio. Aproveitamos para pôr em dia as conversas e histórias após longo tempo afastados. Milton tem razão, amigo é para se guardar do lado esquerdo do coração. Esse é mais que um amigo, é um irmão que a vida me deu.
Em tempo: Este texto na verdade trata-se de um capítulo do livro que vem a ser publicado em breve, portanto, há muitas histórias, à medida que for possível e tambem lembradas, serão incluídas numa sequência sem a preocupação da cronologia.